terça-feira, 3 de agosto de 2010

Cores da literatura

Por: Francisco José Viegas
‘O vermelho e o negro’, um livro magistral de stendhal, serve para dizer aquilo que é tantas vezes mal-entendido – leiam os clássicos, por favor.
O debate sobre "a leitura dos clássicos" devia ser reaberto em regime permanente. Não se percebe como, a certa altura, o tema passou a ser polémico e pessoas insuspeitas apareceram no confronto de cenho franzido – como se "a leitura dos clássicos" fosse uma obrigação do antigo regime, reservada a senhoras desiludidas ou a cavalheiros na andropausa.
Pessoalmente, esqueci-me de alguns. E, periodicamente, vou à estante recolher ‘Jane Eyre’, ‘Orgulho e Preconceito’, ‘O Monte dos Vendavais’, ‘Anna Karenina’, a lista não tem fim, mas inclui ‘A Cidade e as Serras’, ‘A Brasileira de Prazins’ ou, para rebolar de riso, ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’. Para efeitos de ressentimento político, criou-se a ideia de que "a leitura dos clássicos" era uma "parcela de elitismo" nos programas de ensino.
Já tinha visto maus argumentos mas um assim tão mal rebuscado jamais me passara pela ideia; justamente, a leitura dos clássicos na escola é uma oportunidade para que os menos favorecidos pelo destino possam contactar de perto com a respiração de grandeza que fez a literatura ser literatura.

A paixão de ‘Sorel
Na escola, a substituição de grande parte dos clássicos pelos chamados "discursos contemporâneos" abre caminho para o empobrecimento estético, para a destruição do próprio conceito de literatura – e, a coberto da "democratização" (perversa), para o nivelamento de todos os livros. Assim, ler Eça de Queirós é "a mesma coisa" que ler um romance de Danielle Steel ou Stephenie Meyer.
O leitor que ajuíze, mas a minha recomendação desta semana vai para ‘O Vermelho e o Negro’, de Stendhal (nome literário de Henri-Marie Beyle, 1783-1842) – o mesmo autor de ‘A Cartuxa de Parma’, cujo cenário, as guerras e campanhas napoleónicas, é o pano de fundo de toda a sua obra.
Em ‘O Vermelho e o Negro’, originalmente publicado em 1830, o personagem é ‘Julien Sorel’, que, tal como ‘Fabrizio’ (o personagem ‘italiano’ de ‘A Cartuxa’), sonha em participar na guerra. O que poderia ser um ‘livro de aventuras’ ou um fresco social do início do século XIX, ou ainda o retrato das ambições de um jovem no Império, acaba por ser uma história densa, perturbadora, sobre a ascensão e queda do Império, sobre as paixões de ‘Julien Sorel’ (ora pela mulher do seu protector, ora pela filha de outro, ora pela mãe desta), num crescendo trágico que culminará na morte ou na desventura.
O leitor suspeita, a história enevoa-se e irrita, o personagem desilude (em constantes manobras de hipocrisia, disfarçando a origem plebeia) mas, ao mesmo tempo, é um "homem demasiado humano" a quem desculpamos tanto o ciúme como o exibicionismo ou o arrivismo. Em última instância, trata-se de um retrato, colorido e a quente, da sociedade romântica francesa.
Há um fio de ‘Romeu e Julieta’ nesta história e nos amores turbulentos de ‘Sorel’ e de ‘Matilde La Mole’ – até a morte, enfim, aparece como uma sinfonia imperdível, à beira da epopeia e dos precipícios da paixão. É isto um clássico.

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