sábado, 30 de outubro de 2010

A derrocada do cimento - Desaba o betão levantado na 'Madeira nova'. Mas a argamassa mental resiste

Por Luís Calisto

Se as falências de empresas ocorressem com cerimónia fúnebre, a 'Madeira nova' andaria todos os dias de luto e os cangalheiros refulgiriam como novos-ricos da crise. Já longe dos empreendimentos megalómanos inaugurados com muita espetada, americano e discursos a esmagar os 'inimigos do desenvolvimento', chefe e sagitários do regime deveriam comparecer agora ao funeral de cada 'obra feita'. Com obrigação de carpir o conhecido discurso verborreico no elogio fúnebre à 'obra' finada.
O eleiçoeirismo de 30 anos só poderia levar ao velório que serve de transição para um período de nojo financeiro capaz de deprimir várias gerações do futuro.
Por enterrar apodrecem entretanto projectos da 'Madeira nova' que não atingiram o estatuto de 'obra feita', tendo-se extinto antes da gloriosa inauguração.
O Minas Gerais vai abaixo. Aplausos. Insinua-se o derrube de um triste mamarracho. Mas o povo inocente que vá abrindo mais furos no cinto da miséria. Governo, câmara e promotores da obra planearam e fabricaram tal 'elefante'. Mas, depois de longa polémica, ei-los que agitam a demolição. Alguém prestará contas? O diabólico prédio não trepou com autorização oficial? Os promotores não construíram acima do estipulado? Bom, escuso cansar o raciocínio. Não há culpados. A sentença repete-se: tubarões erram, o povo paga.
A conta não poupará sequer os 'inimigos da Madeira' sempre críticos daquela preciosidade. Quanto aos 'amigos da Madeira' - governantes, autarcas e promotores -, saem incólumes do esbanjamento. Paira até sobre a estátua do Infante o espectro de uma depravada indemnização.
Peculiaridades do regime laranja, herdeiro de 1926. Os barões da nota arriscam. Se resultar, dilatam a fortuna. Se falhar, paga o povo.
Generaliza-se a derrocada do jardineirismo cimentado. Desponta à evidência o rotundo fracasso de políticas sociais, económicas e financeiras loucas, sem ponta de sustentação.
Hotéis inaugurados a preceito, com discursos politiqueiros, caem hoje nas mãos dos bancos credores. Rua das Pretas, Rua dos Tanoeiros, Carreira, tantas outras de passado comercial glorioso, desenham a carvão uma capital fantasmagórica de montras forradas a papel de jornal crestado. Máquinas e camiões pastam nos estaleiros desactivados e em baldios. Construções inacabadas de cavername exposto jazem morbidamente em plena zona hoteleira.
O apregoado esplendor desenvolvimentista dá lugar a um montão de vigas e jactâncias encarquilhadas. A marina lá para oeste. Fóruns megalómanos como o de Machico onde funciona talvez um cabeleireiro. Ou o da Boaventura-Santa Cruz, com meia dúzia de automóveis nos parques e, que se veja, um ou dois cafés às moscas. Paga o povo.
Centros cívicos desproporcionais penam inactivos. Paga o povo.
Estádios e pavilhões em freguesias a dez minutos umas das outras - paga o povo.
Paga o povo porque alguém já recebeu. E a factura mais dolorosa ainda vem a caminho.
Quem se lembra de inaugurações pomposas em parques industriais lançados para pasto de cabras? Paga o povo.
Arrasa toda uma História a política errada para o desporto lançada com a usurpação governamental de dois grandes clubes, que com o suor dos seus sócios e o arrojo dos dirigentes haviam atingido brilhantemente o topo do futebol nacional. O regresso aos regionais de dezenas de clubes, depois de milhões deitados fora numa insípida III Divisão, é prova do malogro. Quem paga? O povo.
À conta de práticas desovadas de um narcisismo fanático, a dívida insular atinge hoje uma cifra impossível de reproduzir nestas linhas, pelo tamanho. De provocar dores de cabeça ao mais libertino. Mas toda a gente sabe: questionar a dívida é ser 'inimigo da Região'; lamentar os 15 mil conterrâneos desempregados é pactuar com os 'comunas'; chorar os sem-abrigo que emborcam 'Ganita' à porta do Carmo e nas escadas do Anadia é 'ofender os madeirenses'; alertar para a galopante pobreza é 'trair a Autonomia'; criticar mordomias revela distorção psíquica.
Papagueiam a teoria do chefe uns mestres do oportunismo e da veniaga conglobados em redor do trono: 'bom madeirense' é o que "cala a desgraça". Como o vento denunciado por Alegre. Calar, dormitar, calar - eis a postura correcta de um patriota, diz 'a voz do dono'. Daí os vivas à IV República. A ânsia por um regime ainda menos livre. Daí o ódio à I República. Daí a tese escrita pelo chefe: a monarquia constitucional foi "mais liberal e mais tolerante do que a I República". Já Guerra Junqueiro apontava o 'Único Importante' da monarquia: "O Estado é o rei. Cidadão há um único: D. Carlos. Os deveres são nossos, os direitos, dele. Estrangula-me as ideias, arromba-me a gaveta."
Saudar o esqueleto da realeza é o mais natural nas actuais mentes fossilizadas que aturamos. Belos tempos os do 'come e cala'. Poeta Junqueiro chorava, no tempo do rei, "um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonha, feixes de miséria, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que já nem com as orelhas é capaz de sacudir as moscas." Acusa Junqueiro "uma burguesia cívica e politicamente corrupta até à medula, já incapaz de distinguir o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas". E a raiva do poeta ante um parlamento que não passava de "esfregão de cozinha" às mãos do governo que servia o rei.
Raio de cogitações comparativas com o parlamento de hoje...
O cimento! O cimento da 'Madeira Nova' e das suas minas gerais ruirá. Mais difícil, neste 'calar da desgraça', será resgatar a dignidade popular da argamassa de incultura e medo. Porém, "mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre ..."

In DIÁRIO

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